Artigo

Psoríase e transplante capilar: relato de caso e revisão de literatura

Publicado em

20/08/2022

Maira Renata Merlotto, MD, MsC¹

Mulher com camisa branca

Descrição gerada automaticamente

Alan Wells, MD²

Homem de terno em frente a parede de madeira

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RESUMO

Psoríase é uma doença inflamatória crônica, imunomediada, com acometimento frequente do couro cabeludo. O Fenômeno de Koebner é o desenvolvimento de lesões isomórficas na pele saudável de paciente com doença cutânea preexistente, secundário a trauma, mais comumente psoríase. Apresentamos relato de caso de transplante capilar em paciente com psoríase no couro cabeludo e revisão de literatura sobre o risco do desenvolvimento de fenômeno de koebner no pós-operatório.

 

INTRODUÇÃO

Psoríase é doença cutânea inflamatória, papuloescamosa crônica, imunomediada, que resulta de predisposição poligênica combinada a fatores desencadeantes ambientais, com prevalência de 0,1% a 2,8% na população geral. 1,2 Está associada a várias condições importantes, incluindo depressão, artrite psoriásica e síndrome cardiometabólica, levando a um fardo substancial para os indivíduos. 1,2

Placas eritemato-escamosas bem demarcadas caracterizam a forma mais comum de apresentação e o couro cabeludo representa um dos locais mais acometidos, junto com cotovelos e joelhos, seguidos de unhas, mãos, pés e tronco. 1,2

A psoríase pode surgir em qualquer idade, desde a infância até a oitava década de vida. Dois picos de idade são descritos: dos 20 aos 30 anos de idade e dos 50 aos 60 anos. Em cerca de 75% dos pacientes, a idade de início ocorre antes dos 40 anos. 1,2

O fenômeno de Koebner é o desenvolvimento de lesões patológicas isomórficas na pele traumatizada de paciente com doença cutânea preexistente, mais comumente psoríase. Heinrich Koebner (1838-1904) relatou o surgimento de novas lesões de psoríase na pele saudável após lesão ou trauma de pele de pacientes com psoríase. O fenômeno de Koebner também foi descrito em outras doenças de pele, incluindo vitiligo, líquen plano, verrugas virais e molusco contagioso.3

Apresentamos caso de paciente com psoríase do couro cabeludo submetido a transplante capilar técnica FUE (follicular unit excision), sem manifestação do fenômeno de Koebner, e a respectiva revisão de literatura.

 

RELATO DE CASO

Homem de 32 anos, diagnóstico de alopecia androgenética (AAG) Norwood-Hamilton classe IV, em tratamento com finasterida 1mg/dia via oral e minoxidil tópico há dois anos. Há sete anos, foi diagnosticado clinicamente com psoríase em placas, após trauma em jogo de futebol, com placas nas pernas, cotovelos e couro cabeludo. Realizou tratamentos prévios com corticoide tópico e inibidor de calcineurina, sem remissão, com controle clínico parcial.

O exame físico inicial revelou extensa placa na região temporal direita (Figura 1), uma placa menor e limitada na área temporal esquerda (Figura 2) e discreta descamação na região parietal.



Rosto de homem com tatuagem na cabeça

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Figura 1. Placa de psoríase extensa na região temporal direita. Excluída da marcação da área doadora.

 

Tatuagem no rosto

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Figura 2. Placa de psoríase na região temporal esquerda. Excluída da marcação da área doadora.



Foi prescrito tratamento clínico da psoríase com propionato de clobetasol a 0,05% tópico por 2 semanas, seguido da aplicação diária de dipropionato de betametasona e pomada de calcipotriol. Após um mês, as lesões melhoraram parcialmente, mantendo eritema e descamação. 

Para a demarcação da área doadora, as placas de psoríase foram excluídas. Foi realizado transplante capilar FUE com 3420 unidades foliculares (UF) do couro cabeludo e 350 UF da barba, totalizando 3770 UF e 8090 fios (Figura 3). As placas de psoríase foram evitadas tanto durante a extração dos fios, como durante a realização das incisões prévias. Para implantação utilizamos a técnica DNI (dull needle implanter) e os enxertos foram distribuídos na região frontal, parietal e vértice.

 

Uma imagem contendo comida, mesa, bolo, pedaço

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Figura 3. Pós-operatório imediato. Áreas com lesões de psoríase sem implantação de enxertos.



No pós-operatório de seis meses (Figuras 4 e 5), o paciente apresentava excelente crescimento dos fios implantados e não exibia evidência de novas placas de psoríase ou inflamação ou descamação do couro cabeludo. Manteve as lesões iniciais na área doadora, com o mesmo grau de inflamação.

 

Rosto de homem visto de perto

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Figura 4. Avaliação pré-operatória.

 

Rosto de homem visto de perto

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Figura 5. Seis meses após o transplante capilar. Apresenta adequado crescimento dos fios transplantados.



DISCUSSÃO

 

Psoríase é uma condição crônica e recidivante, seu tratamento deve visar minimizar danos físicos e psicológicos, tratando os pacientes desde o início do processo. Na psoríase crônica em placas, as lesões podem persistir por meses a anos nos mesmos locais. Sua gravidade é baseada na área de superfície corporal acometida e na classificação clínica das lesões, de acordo com o grau de eritema, infiltração e descamação.1,2

A fisiopatologia subjacente da psoríase envolve várias classes de células T e suas interações com células dendríticas e células envolvidas na imunidade inata, incluindo neutrófilos e queratinócitos. Os achados histológicos típicos incluem acantose com cristas alongadas, hipogranulose, hiper e paraqueratose, vasos sanguíneos dilatados e infiltrado perivascular de linfócitos com neutrófilos isolados ou agregados na epiderme.1,2

Tratamento tópico é indicado para casos limitados, enquanto fototerapia, metotrexato, ciclosporina e imunomoduladores (terapias “biológicas”) são opções para psoríase moderada a grave, com melhora significativa e melhora da qualidade de vida.1,2

Descrito pela primeira vez em 1876 como o aparecimento de novas lesões de psoríase na pele não acometida de pacientes com diagnóstico prévio de psoríase, como consequência de trauma, o fenômeno de Koebner já foi descrito em inúmeras condições. Ocorre em indivíduo suscetível dependendo do grau de atividade da doença (eruptiva, florida e progressiva) e do seu estado de tratamento, sendo mais comum em pessoas que não estão em tratamento ou em tratamento irregular. Sempre que se apresenta, é um evento “tudo ou nada” (ou seja, aparece em todas ou nenhuma das áreas traumatizadas). A profundidade da lesão é crucial para que ocorra a Koebnerização: tanto a epiderme quanto a derme devem ser envolvidas simultaneamente. 3,4

A literatura disponível sugere que o intervalo de tempo entre estímulos exógenos e Koebnerização é variável e depende do grau de sensibilidade para o desenvolvimento da resposta de Koebner, que pode ser uma característica única da pele do paciente. Em geral, tende a ocorrer dentro de dez a vinte dias do trauma, mas pode variar de três dias a até dois anos. 3,4

Até o presente estudo, existe apenas um relato de caso descrito associando o fenômeno de Koebner ao transplante capilar. Portanto, descrevemos um caso de transplante capilar em paciente com psoríase em placas no couro cabeludo para fomentar discussão sobre essa condição. A literatura revela poucos relatos de casos descrevendo Koebnerização em pacientes com psoríase após trauma cirúrgico (resumido na Tabela 1). Até mesmo uma incisão de 10 mm poderia promover a Koebnerização, como na dacriocistorrinostomia externa. A maioria das descrições anteriores e estudos retrospectivos foi relacionada a cirurgias ortopédicas e plásticas reconstrutivas, sem estudos prospectivos com transplante de cabelo na psoríase. 4

 

Tabela

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Tabela 1. Revisão literária da ocorrência do Fenômeno de Koebner após trauma cirúrgico.



Vaggu AK, et al publicaram na revista FORUM em 2012 o artigo “Should hair transplantation be performed in psoriasis?”, um estudo prospectivo sobre transplante capilar na psoríase, com sete pacientes: seis casos de transplante de cabelo e um de cílios. Dos seis casos de transplante no couro cabeludo, cinco foram técnica FUT e um, técnica mista (FUT e FUE), e apenas um desenvolveu Koebnerização (FUT). Não houve infecção tanto nas áreas doadoras como receptoras. Evolução com cicatrização normal na área doadora de todos os pacientes, mesmo no paciente em que a incisão foi feita na borda da placa de psoríase. Não observaram complicações decorrentes da inclusão da placa de psoríase na faixa doadora, e os enxertos preparados a partir de placa de psoríase ativa também apresentaram excelente crescimento. 5

Um dos pacientes, em que os enxertos foram preparados a partir de área doadora normal - sem lesões ativas - três semanas após a cirurgia, desenvolveu eritema, pústulas, crostas e agravamento de sua psoríase em todo couro cabeludo (áreas doadora e receptora). Após confirmar o diagnóstico de psoríase pustulosa, iniciaram tratamento com metotrexato via oral 15 mg/semana. Em duas semanas evoluiu com melhora e no seguimento de nove meses, apresentou excelente crescimento do cabelo transplantado, mas desenvolveu psoríase crônica em placas na região parietal direita e esquerda. Atualmente, está em uso de metotrexato via oral, clobetasol loção e xampu de alcatrão. 5

O risco de Koebnerização foi muito baixo. Supostamente porque todos os casos tinham psoríase leve e/ou em regressão. Como observado em um caso, em que ocorreu agravamento das lesões ou surgimento de novas placas, o tratamento com metotrexato resultou em controle clínico, sem qualquer efeito adverso no crescimento do cabelo transplantado. Vaggu AK e colegas direcionam que, se alguma lesão de psoríase estiver ativa na área doadora, é prudente tratar por pelo menos duas semanas antes do transplante capilar. Em contraste com os relatos de infecção de ferida operatória em pacientes com psoríase descritos em estudos ortopédicos, Vaggu AK, et al não notaram nenhuma infecção. Finalmente, apontam que, além do trauma da incisão, o estresse cirúrgico também pode agravar a psoríase, e o risco deve ser considerado de forma individualizada.5

Por outro lado, em 2017, Mohebi P., após notar melhora do quadro clínico de psoríase em um paciente com lesões de longa duração no couro cabeludo após transplante capilar, buscou ativamente pacientes adicionais com psoríase do couro cabeludo para elicitar a resposta ao transplante capilar. Após confirmar o diagnóstico clínico e histopatológico de psoríase no couro cabeludo de três pacientes, transplantaram os enxertos sobre ou muito próximo às placas de psoríase ativa para obter uma resposta. Eles acompanharam as lesões após o transplante capilar e as avaliaram clínica e histologicamente para evidência contínua de psoríase ativa. Todos os três pacientes foram avaliados periodicamente dentro de sete a quinze meses após o transplante capilar, com bom crescimento dos fios transplantados. Eles foram submetidos a nova biópsia da área da placa de psoríase original. Os achados histopatológicos foram consistentes com alterações pós-operatórias e nenhuma evidência histológica de psoríase foi documentada em nenhum dos três pacientes. Um dos três pacientes foi acompanhado por mais de cinco anos e não apresenta evidência de recorrência da doença. 6

Portanto, Morebi P. sugere que o transplante de unidades foliculares capilares em placas de psoríase do couro cabeludo pode ser um método eficaz para aliviar os sintomas da psoríase e possivelmente ser usado como opção de tratamento. 6

CONCLUSÃO

Há escassez considerável de estudos sobre taxas de complicações imediatas e tardias após cirurgia de restauração capilar em pacientes com psoríase do couro cabeludo e quais fatores de risco para complicações. Todos os cirurgiões devem estar cientes da existência do fenômeno de Koebner e alertar os pacientes suscetíveis quanto ao risco sua ocorrência. Assim, acreditamos que o transplante capilar pode ser realizado em pacientes com psoríase com rigoroso aconselhamento e realização do tratamento adequado antes da cirurgia. Mais estudos sobre o mecanismo exato desse fenômeno podem abrir caminhos para novos tratamentos e melhora da qualidade de vida dos pacientes.

 

REFERÊNCIAS:

  1. Bolognia J, Jorizzo JL & Schaffer, JV. Dermatology. 2017.

  2. Griffiths CEM, Armstrong AW, Gudjonsson JE, et al. Psoriasis. Lancet. 2021 Apr 3;397(10281):1301-1315.

  3. Diani M, Cozzi C, Altomare G. Heinrich Koebner and His Phenomenon. JAMA Dermatol. 2016;152(8):919. 

  4. Ganguly AK, Laghimsetty S, Bhagyalakshmi N. Koebner Phenomenon Triggered by External Dacryocystorhinostomy Scar in a Patient With Psoriasis: A Case Report and Literature Review. Ophthalmic Plast Reconstr Surg. 2018 Mar/Apr;34(2):e52-e53. 

  5. Vaggu AK, Panchaprateep R, Caroli S et al. Should hair transplantation be performed in psoriasis? Hair Transplant Forum International. Jul 2012, 22 (4) 124-126.

  6. Mohebi, P. “Hair Transplant for Treatment of Psoriasis Case Report Advances in Plastic & Reconstructive Surgery.” 2017.




Maira R. Merlotto

 

Médica dermatologista pela Faculdade de Medicina de Botucatu/UNESP. Cirurgiã capilar no Grupo Wells de transplante capilar. Fellow cirurgia capilar e de tricologia no Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM). Mestrado em Medicina/ Tricologia pela UNESP. Graduação em Medicina pela Faculdade de Medicina de Botucatu - UNESP. Membra American Hair Research Society (AHRS), Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), Associação Brasileira de Cirurgia da Restauração Capilar (ABCRC) e World FUE Institute (WFI).

 

Folículo - Edição 25

Fonte:

ABCRC

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